sexta-feira, 25 de junho de 2010

Trezentos Segundos & Michael Jackson

No dia em que completa um ano da morte daquele que, como disse o fundador da Motown, foi o maior artista que já viveu
e lembrando a filha de Martin Luther King incitando para que todos possamos ser inspirados a seguir e deixar nossa luz brilhar, na semana em que decidi voltar ao saudoso mundo das oficinas literárias, vai um conto para matar as saudades da ficção. O texto abaixo tem dez anos, do tempo do Tio Assis
e não foi publicado na primeira versão deste blog (embora suspeite que ele tenha sido publicado no Leia-me. Estou certo, Divan?).


TREZENTOS SEGUNDOS

PERSONAGENS:

CASCATA: o marido. Negro, traficante.
BETTY: a esposa. Branca, preocupada.
LISA: a filha. Meiguinha, 7 anos.
GEZEBEL: a vizinha. Fofoqueira, gostosinha, cabelos lisos.
OSÓRIO: o policial. Novato, impulsivo, capricórnio.

ATO I:

Começo de noite de terça. Da beirada da mal cuidada varanda de sua casa, Cascata olha para baixo, contemplando as malocas que preenchem toda a extensão do morro; dos pés à cabeça, como se tivesse sido coberto por um lençol de casas marrons e enfadonhas. Cacos, não casas. Ao voltar-se para além da porta da sala, ele percebe que sua mulher ainda não havia parado de falar. Manda a vaca calar a boca. Ela não obedece. A filha sai pela porta da cozinha. Cascata aproxima-se e a esbofeteia. Sim, a vaca. Mulher tem que tratar assim, senão não respeita ninguém. Ele volta para o quarto e termina a garrafa de cachaça inaugurada dez minutos antes.

Betty diz uma coisa qualquer, reclama de uma coisa qualquer. O marido faz que não é com ele, mudo na varanda. Ela continua falando até que ele se vira e grita para ela ficar quieta. Betty abala-se e diz para a filha ir brincar na rua. A discussão se acalora. Ele pula em cima dela e a espanca. Sim, o estúpido. Vai para o quarto, sem parar de ofender e humilhar a esposa e continua bebendo. É só o que ele sabe fazer mesmo. Homem ignorante não dá pra conversar. Todos uns covardes, batendo em mulheres. É por isso que homem tem que ser corno. Todos eles.

Lisa apaga a luz de seu quarto e segue em direção à sala, onde vê o casal discutindo. Sua mãe ordena que ela vá para a rua. Ela vai. Na porta, está a vizinha que a conduz pela mão até uma outra casa. Segue sem olhar para trás e sem ver seu pai batendo em sua mãe. Mas Lisa pensa que seu papai pode bater em sua mamãe, porque ele é homem e mamãe é mulher. E homem pode. Ele bate na filha todos os dias, mas é porque ela também é mulher.

Gezebel conhece os vizinhos que têm. Ao perceber que a briga das sete da noite começou adiantada, não tarda em adentrar a porta da cozinha e pegar a mão da criança, filha do casal. Gezebel convida-a para ir até a casa onde as duas sempre comem biscoitos, tomam leite com chocolate e conversam. Muito especialmente em situações como essa: Cascata, o Animal, desconta suas frustrações em Betty, a Guerreira, que além de ter que se proteger do troglodita com quem mora, ainda tem que cuidar de Lisa, a Princesinha. Coitada dessas duas. A vida no morro é sofrida e a dessas duas não é diferente. Sobreviventes, é o que elas são.

Osório sobe o morro antes do batalhão, que ainda vai demorar mais alguns minutos, sabe-se lá Deus quanto. A esta altura, o perímetro já foi coberto. Ele segura seu revólver prateado e aperta o distintivo três vezes, como em um ritual. Caminha entre os estreitos corredores formados pelos intervalos entre as casas. Sem saber o que lhe aguarda, mas tendo uma vaporosa idéia, ele segue. Ali em cima, não existem heróis. É o serviço dele, não há escolha. Alguns barracos a mais e ele vai pedalar a porta, pegando o marginal de surpresa. Porque é assim que se faz: vagabundo tem que ser tratado que nem vagabundo. Direitos humanos, o cacete.

ATO II:

Cascata permanece sentado em sua cama, olhando para a porta do quarto e a garrafa vazia deitada no chão. Betty vai até o banheiro lavar o rosto, pressionando o pano com os cinco cubos de gelo contra o rosto. Lisa começa a comer os biscoitos, sentada em frente à televisão da vizinha, que pede licença dizendo que vai buscar um presente. Ao voltar, Gezebel traz consigo um pequeno vestido costurado por ela mesma. Osório focaliza a casa do traficante, estudando o espaço a sua volta.

Cascata passa por Betty. Betty permanece quieta e desvia o olhar de Cascata. Lisa sorri para Gezebel. Gezebel pergunta se Lisa gostou. Osório se aproxima da porta da cozinha. Raiva para Cascata. Arrependimento para Betty. Elogios para Lisa. Agradecimentos para Gezebel. Osório aponta a arma e dá um passo à frente.

FINALE:

Osório grita para que Cascata fique parado, apontando o revólver para o seu rosto. Ele agarra Betty pelo braço e a atira contra o policial, como se fosse um pedaço de roupa suja. O policial desvia-se dela e põe-se a correr atrás do traficante. Betty também corre. Sai em direção à casa de Gezebel, onde provavelmente a filha Lisa estaria. Começam os tiros. A mulher está desesperada, pois já é noite. Dezenas de policiais armados começam a surgir do nada, como se fosse um enxame. Tudo acontece muito rápido, como sempre foi e para sempre será ali em cima: Betty adentra o pequeno pátio de Gezebel, onde se encontram a vizinha, a filha e aquilo que ela chama de marido encurralados pela polícia. Osório está mirando nos olhos de Cascata, que em um gesto rápido pega Lisa como refém. Alguns homens abaixam seus rifles, outros mantém-se na posição. A gritaria prossegue. Osório diz para Cascata largar a menina. Ele jura que vai atirar em Lisa e Osório sabe que ele não está mentindo. O fio da extensão da luz que ilumina o pátio é cortado. Ao olhar para trás, Osório não consegue reconhecer o rosto do policial vendido que o traiu. Os tiros recomeçam, cessando logo em seguida. Escuro. As luzes se acendem. Lisa está morta. Deitada sobre o chão lamacento, sujando seu vestido novo. Betty começa um misto de choro, grito e gemido, tão histericamente quanto um ser humano pode conceber. Não percebe a vizinha ao lado, chorando de dor. Imóvel. Para sempre. Os homens espalham-se rápido, na débil tentativa de capturar Cascata. Osório baixa a cabeça. Por que não foi ser carpinteiro? Não existem heróis ali em cima. Uma ronda a mais, um corpo a mais, uma história para não ser lembrada a mais. Eles sempre fogem. A caçada se prolonga. A luta também.

E nunca termina.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Don't cry for me, Argentina

Talvez você ache que este é um blog turístico – está começando a ser –, mas o caso é que a presidente da Distant Thunders Corporation está embarcando, no momento em que escrevo com a televisão desligada e ouço fogos estourando (Brasil x Coreia, rá!), para a cidade na qual fica o café onde Borges ia e depois curtir um pouco de neve, na cidade onde escrevi um trecho do meu rebento na frente do Centro Cívico três anos atrás, um trecho que na verdade nem sei se é relevante para a narrativa – vale mais pelo registro histórico.

Enfim, retomando meu anseio por ficção, comecei ontem o Vestido de Noiva, que peguei emprestado com a minha tchutchuka, e já estou mirando a obra-prima de um dos gigantes da literatura noir, gênero da literatura que descobri tardiamente, mas que aprendi a amar, desde que li O Jardim do Diabo, e antes quando li o Wolverine de Frank Miller e Chris Claremont [não é uma obra noir exatamente, mas os quadrinhos têm muito daquela atmosfera e voz], e as histórias começaram a se proliferar em minha cabeça. Revi Vargas Llosa falando que sua vocação é transpiração, e da entrega, exigência e perseverança que o exercício do ofício literário demandam. Escrever não é mole, malandro. Ainda quebro a cabeça tentando levar um personagem de uma esquina a outra, fazendo os cálculos de que horas ele deve estar no lugar x para conseguir estar no lugar y na hora tal, se isso tudo afinal é verossímil, não é clichê, não é forçado, e se é isso mesmo o que quero escrever.

Começou a farra nos arredores, mais fogos estouram. Sim, acho que é isso o que quero escrever, e sigo na busca. Mais uma frase, mais um parágrafo, mais um dia, mais uma história.

Enquanto isso, reserve um tempinho para ler a defesa dos livros de papel e do romance por um apaixonado, como eu, e esqueça os milhões que entram na conta daquela rapaziada só para brincar de jogar bola.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Para quem quer resistir

A minha intenção era mostrar que o conformismo, a acomodação são mais destruidores do que qualquer outra coisa. Entregar-se é a pior atitude que ocorre a um homem. A entrega deteriora, desgasta, esfacela. No entanto, você levantou também uma outra interpretação que pode ser aplicada ao livro: determinadas engrenagens esmagam o homem. Mas aí é que está, o homem precisa resistir, principalmente se você tiver alguma lucidez, visão do mundo, reflexão. Quem enxerga mais tem o dever de alertar, de conduzir e não pode se deixar levar. Importante é: uma obra pode levantar quantas teorias forem possíveis a seu respeito. Cada leitor que abre o livro passa a recriar esse livro; e esta é uma das características da obra de arte: ser aberta, permeável.

Ignácio de Loyola Brandão, entrevista a Edla van Steen. In: Viver & Escrever – vol. I. Ed. L&PM.

Resista você também.

By the way: já deixo a dica de dois amigos que também resistem, Marcelo Molina na pintura, e Rodrigo Barcellos na literatura.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

RIP, Uruguai & Disciplina Literária

Esta é a semana de aniversário de 17 anos do RIP, o personagem cuja autobiografia rendeu meu primeiro conto e uma reprovação em biologia no fim do ano. Pensei em republicar “Os Quatro Cavaleiros” em homenagem, mas por enquanto aproveito que a mãe de nome erudito foi passar o feriadão no país de Horacio Quiroga, e lendo a coluna de Cássio Pantaleoni no portal Artistas Gaúchos sobre a pouca bagagem literária dos muitos que querem escrever, mas poucos querem ler, sigo tentando retomar minha leitura de um conto por dia antes de dormir. Vejo como faz falta leitura & produção diárias. John Coltrane dizia que se você passar um dia longe de seu instrumento, ele vai passar uma semana longe de você. Parafraseio, traduzindo para literatura: se você passar um dia longe de seu texto, ele vai passar uma semana longe de você. É verdade. Estou há dias preso em um diálogo entre dois personagens sobre uma ponte, que parece não andar. É claro, como li na Bíblia, a gente tem que escrever e seguir em frente, lutando contra a insistente autocrítica, resistir à voz que declara o texto enfadonho, chato, clichê.

Sábado teremos Solitude, de volta aos palcos do Brothers, vou matar um pouco as saudades das baquetas, embora confesse que coisas assim me fazem pensar seriamente em nunca mais tocar bateria. Bem, entre uma música e outra, talvez dê para treinar alguns backsticks. Enfim, a gente tenta dar nosso melhor a cada dia. E um dia de cada vez, é possível.