quarta-feira, 30 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 94


21:55

Um novo tempo se aproxima. Um novo mês, embora as datas não façam tanta diferença depois de um tempo. A estação da dor voltou, então escrevo. Preciso escrever. Jogar tudo isso no lixo, sim, mas tenho que ir até o final desta história.

Pensei em Clara. Sarah me disse que as crianças simbolizam muito. Então vejo um boneco. Que pode ser de pano, mas sei que era homem. Em minha imaginação, era um boneco moreno. Então Clara cravou um pauzinho no boneco, como se fosse uma estaca, e girou na altura do coração. E então cravou o pauzinho no lugar onde ficaria o... Não tem uma maneira delicada de dizer isso.

Cu.

E ela cravou o pau até fazer um furo ali.

De onde você acha que ela tirou isso?

Maria, a mãe, deve ter encontrado o boneco, e talvez não tenha se perguntado por que ele tinha um buraco bem ali. Deve ter pensado que era coincidência, ou que era pelo fato de o boneco ser meio antigo. Alguma traça teria roído. Ou talvez Maria não tenha pensado nada.

Mas neste momento acho que ela pensou, mas assim: fingiu que não pensou.

Clara queria a morte do homem alto e moreno de cabelos lisos.

Ela fez o boneco sofrer o que ela sofria. Isso não é óbvio?

Talvez seja para você, que talvez me leia, meu interlocutor inexistente, e parece claro para mim. Doído, mas claro. Dói escrever, dói pensar nesta história. Queria contar uma história de família perfeita como um comercial de margarina. Mas não são essas as frases que vêm para mim quando me proponho a escrever uma ou duas palavras, e acabo escrevendo alguns parágrafos. Sei que tem uma lógica, que essa dor vai ter um fim.

Um dia.

Clara cravou o pauzinho no boneco.

Será que o Sr. Doutor Claudius viu isso?

Ele estava muito ocupado cuidando de Lara.

E não cuidando de Maria.

E tinha coisas mais importantes, mais visualmente saudáveis, para se ocupar em Clara do que um boneco velho.

Estou cansada. Não sei como termina esta cena, nem sei se foi apenas uma vez. Mas provavelmente não. Matar papai. Eis sua nova brincadeira. E quando fosse maior, quem sabe pudesse incrementar a brincadeira.

E vou continuar escrevendo. Para saber se ela conseguiu crescer.

E se a brincadeira de matar o pai cresceu junto.

22:08

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 93


21:27

Fiquei uns dias sem escrever. Duvido que você tenha sentido falta. Eu quase me acostumei. Maria Acostumada. O caso é que senti uma dor grande como a vida anteontem, e Sarah me deu algumas ordens. Claro que não gosto de ordens, mas de vez em quando Sarah faz isso e quero acreditar que ela sabe o que está fazendo. Então escrevo. E me perguntei:

Se essa dor me volta, embora ela não esteja aqui neste exato momento, neste quarto-cela de onde escrevo, hoje sem Cris ou qualquer ser vivo por perto, por que não falo da dor de Clara? Porque, de alguma forma, as dores devem estar conectadas. Quer dizer, não planejei escrever nada disso, eu, péssima escritora. Apenas escrevi e escrevo, e se essa história está vindo de mim, do longe, de ontem, do nunca, sei lá, ela deve ter algum traço biográfico. Sempre tem. Como disse, Sarah está me contaminando com sua loucura. Malditos psicanalistas.

Mas vá lá. Tenho que falar da dor da pequena Clara. Da dor que Claudius, o maldito homem alto e moreno de cabelos lisos, Dr. Claudius, que não sei se um dia ela conseguiu chamar de pai, fez ela sentir. Talvez ela tenha dito que estava doendo, talvez ele tenha proibido ela de contar. Talvez a promessa de dores piores para a pequena Clara. Quem ia acreditar? Quem ia acreditar na criança, filha do médico, respeitado e o caralho a quatro, maldito seja.

Li um pouco sobre cognição, crenças e outras coisas que Sarah não aprecia, e dizem que existe um troço chamado falsa memória. Então, caso tivessem delatado Claudius, seu advogado – porque ele tinha dinheiro para pagar um bom – teria dito isso: Clara imaginou que foi abusada, mas isso na verdade jamais aconteceu.

Jamais porque não foi na bundinha do advogado, não é mesmo?

Que bom que jamais lerão isso aqui, mas confesso que um misto de raiva, tristeza e dor me invadem quando escrevo isso. Em minha mente, lá está Lara, a jovem tia, passeando no corredor, talvez cuidando de Clara, que é o que ela deveria ter feito, em vez de ficar trancada no quarto com o cunhado, putinha. Ela era jovem, bonita, talvez tivesse cara de songamonga, porque tinha que parecer uma garota exemplar. A que cuida da sobrinha porque a irmã foi internada no hospital.

Maria, a mãe.

E se é possível ter saudade de um personagem, posso dizer que sinto saudade dela. Não sei explicar essas coisas, li que é comum um escritor (e isso deve ser ainda mais verdade para escritoras) se afeiçoarem a seus personagens.

Queria falar do piano. Queria falar de Clara sobre as costas de Maria, as duas sorrindo, atiradas sobre a grama. Sinto vontade de chorar, e sinto vontade de chorar quando escrevo determinadas partes desta história. De alguma forma, a dor que vai, volta, e talvez essa seja a dor de Clara, de Maria. De Jonas e Marco, cujas histórias recém intuo.

Claudius pegou Clara pela mão, saiu com ela, Maria disse para ele ficar. Ele empurrou Maria e saiu com Clara porta afora. Maria sabia o que ele ia fazer com Clara? Em minha mente de criadora fajuta, vejo Claudius levando Clara para dentro de um armazém. Escuro. E tudo some. Não é branco, como antevejo que seja o fim desta história, mas escuro. Um buraco-negro.

O que aconteceu dentro do armazém?

O que você acha?

Desculpe, não consigo escrever.

Não consigo escrever.

Dói. Não vejo nada.

Claudius levou Clara para dentro do armazém escuro.

Será que Clara fazia algum desenho na escola? Ela deve ter pedido ajuda, gritado por socorro. Como ninguém viu? Em minha mente, existe um pedaço de papel nesta história, que contava a história do papai com a filhinha – mas o papel foi amassado, jogado no lixo. Meu deus, Maria jamais viu esse desenho. Claudius amassou e tentou esconder. Na verdade, jogou fora. A professora não mandou chamar os pais de Clara na escola?

Ninguém ia encostar nele.

Médico. Respeitado. Intocável.

Alguém deve ter conseguido encostar nele.

Sim, encostaram nele. Não sei se é assim que termina essa história, e vou continuar escrevendo para descobrir isso. Mas espero que deste lugar estranho e escuro, escuro como um armazém fechado, de onde estou tirando essa história, a floresta do meu cérebro, escuro como um hospital, ou como o umbral, se ele existir, saia alguma coisa mais. Quem sabe encostaram no Doutor Intocável.

Quem sabe Maria, a mãe, tenha saído do hospital.

Talvez Clara tenha sido salva na última hora.

Talvez não.

Paro para pensar. Não sei mais o que escrever. As imagens se confundem em minha cabeça. Meu deus, como odeio esta história. Mas por isso mesmo tenho que escrever até o fim.

Até o fim.

21:56

sábado, 19 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 92


21:56

Sei que você vai dizer que estou me repetindo, mas estou com fome. Vou jantar com Cris, que disse que vai cozinhar para mim, e confesso que gostei do gesto. E gosto de jantar com ela.

Por favor, sem outras interpretações, certo?

O caso é que disse que eu ia escrever, e ela disse tudo bem. Insistir mais um pouco nesta historinha. A história de Clara. A garotinha que se perdeu por aí, e ainda não sei exatamente como ela se perdeu. Quer dizer, não precisava muito, depois de tudo o que ela passou, depois de Claudius, depois de Lara, que deveria cuidar dela enquanto Maria, a mãe, estava no hospital. Consigo entender como ela se perdeu.
E talvez escreva para descobrir se ela é encontrada no fim.

O tempo está mudando. A química em meu cérebro parece estar normal hoje, e até me sinto uma pessoa normal. Nada mal para um começo de noite neste lugar do qual pouco falo. Sarah me disse para continuar escrevendo, ela também quer saber da história de Clara.

Clara poderia ter se tornado pianista. Seria um bom final.

Mas o que acontece com Maria?

A mãe.

Espero que Cris não demore, fico irritada quando estou com fome. Mas talvez seja melhor irritada do que triste. Um estrogonofe não poderia resolver minha dor.

Fico sem escrever e Clara parece que está mais longe de mim. Não tenho escutado mais o piano. Talvez o piano seja o coração desta história, pensei agora. E vou escrevendo, sempre – sempre – sem ter a menor noção de que palavra ou frase vai vir em seguida, e sei lá de onde as coisas surgem.

Sei que a psicanálise vem do inconsciente, e sei que a gente conta histórias a partir do inconsciente.

Sarah que quer me doutrinar. Só pode. Mas não penso muito nisso. Ela disse que era só para escrever. Não pense, só escreva. E é o que tenho tentado fazer. Marcos e Jonas, os garotinhos. Escrevi sobre eles, mas me comprometi a não reler meus escritos. A dor pode voltar. E vai voltar, porque tudo o que escrevi aqui está recheado de dor. Dor cimentando as palavras, colando as frases, e dando um sentido.

Para aquele piano que deve voltar a tocar.

Maria que tocava piano.

Clara que escutava.

Não sei se Claudius já estava se divertindo com Lara.

Ou com Clara, maldito seja.

Mas sei que, por algum motivo, aquele piano deve voltar a tocar. As teclas davam algum sentido que tento encontrar para a dor que aconteceu, e não sei se ela sumiu. Como eu queria simplesmente escrever e contar a história de Clara como uma escritora de verdade em vez de me perder em devaneios, mas Sarah disse que não era para me preocupar com isso. Era só para escrever.

E confiar que no fim tudo isso vai fazer sentido.

22:12

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 91


22:24

A química em meu cérebro está mudando de novo. Achei que tinha me libertado disso.

Mas dói. Está doendo agora.

Doendo de novo.

Em meu peito.

Preciso continuar escrevendo, até que a dor passe. Acredito que uma hora ela vai se cansar e ir embora.

Maria Que Acredita.

Clara tem andado, diz você. Clara andando.

E será que essas pessoas vão se encontrar? pergunta você. Mas como se encontrar, se é uma historinha que estou inventando? Confesso, por outro lado, que penso em Clara, penso em Maria e, para meu horror, penso em Claudius. Penso nas pessoas que habitam essa história. De alguma forma, manter esse povo vivo me mantém viva.

Pensei em Cris hoje, falei com ela mais cedo. Ela dormiu aqui enquanto eu escrevia a noite passada. Gosto dela.

Sei o que você está pensando. Dane-se você. Eu não gosto de mulher. Nem de homem.

Não quero falar de sexo. Vou dizer de novo: não quero falar de sexo.

A verdade é que, de novo, estou cansada e estou com fome. Escrevo só pra dizer que escrevi hoje, e talvez para buscar um pouco daquela magia que faz eu acessar esses lugares escuros dentro de mim. Podia dizer que pensei no piano. Triste, lindo. Talvez essa história seja sobre isso. Talvez seja sobre reencontrar aquela garotinha que ficava escutando a mãe tocar. Na dor há esperança. Talvez fosse nisso que Maria pensasse quando tocava. E então, respiro. Penso. Sarah disse que não era para pensar, apenas escrever.

Neste momento queria dizer que todo mundo morre no fim e acabar esta história.

Mas mesmo assim, se eles morrem: como morrem?

Confesso que não gostaria de passar esse tempo todo contando uma história em que o fim-destino é a morte. É o que penso agora. Como já disse, não penso. Apenas escrevo. Jonas, Marcos, Lara. Maria, Claudius. Clara. Estou com fome, não consigo pensar direito. Mas sei que, de alguma forma, escrever me cura. Apenas por um dia, é verdade, mas é um dia mais perto do fim. E talvez, quando chegar lá, descubra que existe mesmo esperança.

Não desista da vida, Clara. Ainda é cedo para morrermos.

Prometo que não vou desistir de você, garotinha.

Amo você mais do que posso dizer, mais do que você imaginaria, se crescesse para entender o que é o amor. Amo você, Clara.

E Maria, a mãe: também amo você. Amo a sua dor, o seu silêncio. O seu amor de mãe. Ainda há muito o que cavocar nesta história. A única coisa que peço, e vai ser minha oração hoje à noite: não desistam antes do milagre acontecer.

22:41

domingo, 13 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 90


19:09

O tempo está começando a mudar. Dizem que falar do tempo é assunto universal quando a gente não tem assunto.

Ia escrever alguma coisa que, de novo, esqueci. Falei com Cris antes, ela foi tomar banho. Talvez eu tome mais tarde, sozinha. É claro, sozinha, com quem ia tomar banho? Mas talvez a gente jante antes. Ouvi uma discussão por aqui e confesso que fiquei incomodada. Bate-bocas me incomodam. Agressões me assustam.

Me trazem de volta memórias ruins, embora ainda não consiga falar sobre isso.

Não consigo falar porque não lembro ou porque não quero?

Não consigo porque não posso. E não interessa, vou mudar de assunto. Apenas queria registrar que essas agressões me irritam. Duas pessoas aqui estavam discutindo. Não chegaram a brigar, mas pelo silêncio que se seguiu, e ouvi que tinha mais gente lá, deve ter ficado um climão. Que bom que não foi comigo, e quase agradeci por quase ninguém falar comigo aqui.

Pelo menos também não brigam comigo.

O caso é que Sarah me emprestou o diário de uma tal Anne, que escrevia enquanto estava enclausurada com a família em um esconderijo em meio à guerra. Não sei por que Sarah quis que eu lesse esse livro, se para ler a história de uma garota que escreve um diário, ou se para pensar na família dela. Notei que ela tinha algumas questões edípicas, porque não se dava nem um pouco com a mãe e adorava o pai.

Meu deus, Sarah está mesmo me contaminando com suas loucuras.

Sim, eu li um pouco sobre Complexo de Édipo, mas confesso que me deu nojo. Ou não entendi nada. Quer dizer, filha com pai? É isso mesmo?

Como Clara e Claudius?

Me deu nojo, raiva, medo, tristeza. Talvez não tenha entendido direito como funciona, ou sequer queira pensar nisso. Você quer dizer que Clara gostava do que Claudius fazia com ela? Vá para o inferno, nem em mil anos. Fodam-se, psicólogos. Mas talvez o primeiro homem que ela teve, o primeiro homem que ela conheceu, o homem que era para ter sido seu herói, seu modelo de outros homens que viriam no futuro, se viessem, a traiu. Esse homem abusou dela.

Talvez muitas vezes.

Talvez muitas vezes.

Repeti a frase de propósito. Como algo que ficou trancado em mim. O primeiro homem da vida de Clara marcou ela, como gado, talvez para o resto da vida.

Maldito.

Preciso ler mais dessa Anne. Não sei se ela passou pela mesma coisa que Clara. Mas acredite: mais do que posso entender, e mais do que posso dizer, sequer dizer a mim mesma, é tudo sobre Clara. Essa história é sobre aquela garotinha que sumiu no tempo.

E talvez daquela Maria que sumiu também.

19:25

sábado, 12 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 89


22:11

Estou de volta ao quarto. Um tanto triste, talvez apreensiva – ou apenas a necessidade de escrever mais um pouco desta droga de história. Pensei em escrever uma carta para Sarah. Talvez faça isso depois. De alguma maneira, escrever me dói, mas estou aos poucos entendendo (aceitando?) que preciso passar por essa dor.

Pensei no piano, mas não posso dizer que estou escutando alguma coisa. Foi mais como uma lembrança. Dizem que a gente inventa nossas lembranças. Não sei se inventei, mas lembro do piano. Lá fora chove. Escrever mexe funduras em mim que mal consigo explicar – aliás, não consigo explicar de maneira nenhuma. Por isso escrevo. E vou escrever até passar a dor. Até lembrar de mais alguma coisa. Escrever para saber como termina a história de Clara. Ela precisa ter um fim. Não posso deixar tudo pela metade. Pensando bem, posso, mas talvez não deva.

Em minha mente de escritorazinha, e não sei se o piano teve a ver com isso, Claudius, o maldito homem moreno e alto de cabelos lisos, Dr. Claudius, brigou com Maria e brigou com Clara. Grande novidade, mas talvez ele estivesse bêbado e chegado em casa enquanto Maria estava tocando o piano para Clara. Talvez ele estivesse irritado, talvez a música tenha aumentado sua raiva. Vou escrever de improviso, se ficar ruim, como geralmente fica, talvez eu mude, quem sabe, um dia: Maria estava tocando o piano (neste momento me volta à mente a ideia de escrever uma carta para Sarah. Fora desta historinha. Talvez deva parar agora e escrever pra ela).

22:20

23: 54

Nesse meio tempo escrevi a bendita carta para Sarah (não quero comentar, isso não importa; acho que botei uns bichinhos pra correr, e ela disse que era para fazer isso mesmo. Pronto, passou). Conversei com Cris, mas jantei sozinha de novo. Um desses caras que transitam por aqui, um que fazia muito tempo que não falava comigo ou com qualquer outro, me disse que queria ser ouvido, e eu ouvi. Talvez até tenha dado um ou outro conselho.

Maria Que Se Importa.

Não sou uma inútil tão grande, ou completa. Ou esse cara deve ser mais louco do que eu. De qualquer forma, me senti um pouco importante. Ou seja: sem pensar em morrer. Por hoje.

Acontece que não era nada disso que eu queria falar. Queria apenas contar da cena que imaginei: Claudius chega em casa, bêbado, bate em Maria, bate em Clara. Em uma delas, ele a empurrou e caiu sobre o tapete; na outra, deu um tabefe. Não consegui formular detalhes, nem em quem ele bateu primeiro. Mas sei que aquele tabefe doeu. Doeu tanto que quase pude sentir.

Foi quase como se eu tivesse estado lá.

00:01

terça-feira, 8 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara - Dia 88


13:36

Sim, se você repara nos horários que coloco aqui quando escrevo deve ter percebido que agora é começo de tarde. Decidi escrever fora do quarto e há aqui ao lado algumas pessoas que, acho, não estão preocupadas comigo, cada uma presa em seu mundinho. Não posso deixar de registrar que estou me sentindo horrível, com as tripas expostas. Nua em frente a todo mundo. Mesmo que os outros não estejam me olhando: estou nua ao seu lado. Essas pessoas com as quais interajo pouco neste lugar do qual falo pouco.

Maria Fora Do Quarto.

É tão difícil escrever, e fica ainda mais me expondo desse jeito. Então por que comecei a escrever agora? Porque preciso escrever. É a melhor resposta que consigo pensar: uma urgência de tenho que ser algo. Eu que não sou, nunca fui, jamais serei. Mas quem sabe agora?

Maria Quem Sabe?

Tem uma televisão em uma peça ao fundo e os barulhos do programa e suas risadinhas eletrônicas me atrapalham mais ainda. Mas acho que nada pode ser mais alto que aquilo que grita em minha cabeça. Se eu tivesse coragem de mostrar isso aqui para alguém, que certamente jamais vou ter, mas se tivesse, queria saber o que alguém, não sei quem, acha da história de Clara. Algumas pessoas ao meu lado ficam olhando congeladas para a tela do computador. Será que elas sabem mexer no computador ou só estão olhando para ele? Algumas outras caminham pelo corredor, conversam pouco. Ninguém fala comigo, e não quero que ninguém fale. Estou escrevendo, e se parar para pensar, paro de escrever, a história acaba, acaba sem acabar.

Ainda não é hora de morrer.

Nunca tinha pensado nisso, mas talvez pense mais na história de Clara quando estou no quarto. Acho que meu inconsciente já associou aquele lugar com o ato de contar a história da garotinha que sofria abuso do pai alcoólatra, que voltou a beber depois de dez anos abstêmio, e que batia na mulher, internada mais de uma vez, talvez por depressão, talvez por outras coisas, irmã da titia que dava para o papai quando deveria cuidar da sobrinha, e voltamos tudo outra vez. Ainda temos um filho e um sobrinho, Jonas e Marcos, e mais um segredo de família. Marcos era sobrinho de Clara, oficialmente, e irmão extra-curricular.

As pessoas aqui ao lado continuam sem me olhar. Que se danem. Não quero que me olhem, só quero terminar esta história.

Só quero me sentir viva mais um dia. 

13:53

domingo, 6 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 87

21:33

Cris vai jantar comigo hoje. Estou com fome, mas vou esperar ela, que foi tomar banho. Tem gente que toma banho junto aqui, e uma vez tomei banho e Cris ficou me olhando, deve ter me achad0 bonita.

Não quero falar disso.

Não quero falar de sexo.

Vi faz pouco no telejornal uma reportagem sobre uma tal de Sabrina, que esqueceu, de um dia para o outro, tudo o que aconteceu de 2002 até 2013. Ela não lembrava de nada, e a reportagem dizia que isso era porque ela tinha sofrido traumas, inclusive tinha passado por abuso, e tinha problemas com os quais nunca quis lidar, sempre deixou para depois.

Sei o que você pensou.

Mas não foi isso que aconteceu comigo.

Não mesmo.

Sarah vai pirar, e é por isso que nem ela nem ninguém jamais vai ler isto aqui.
A reportagem dizia que essa Sabrina começou a lembrar de algumas pessoas pelo seu cheiro.

Será que consigo lembrar de alguém por sons?

Quem sabe um piano?

Cris saiu do banho. Perguntei se “quase” pra ela, e ela disse “hum-hum”.

Sei que quando vi a reportagem dessa mulher, pensei na história que estou tentando criar. Não que tenha alguma coisa a ver com a outra. Porque, repito, não foi isso que aconteceu...

Comigo?

Paro de escrever. Penso em Clara. Penso em Maria. E acho que não precisaria de mais ninguém para esta história. Cada vez que vejo alguma criança, e vejo de vez em quando, penso em Clara. Todas as crianças que vejo são Clara, sorrindo, cheias de vida, e com a estrada inteira para serem o que quiserem. Todas cuidadas por Maria, a mãe.

Paro de escrever de novo. Virando a esquina, crescendo no horizonte, uma vontade de chorar. Todos choram, todas choram. Esta história podia ter apenas Clara e Maria. Mas aquele maldito médico de reputação intocável tinha que vir para estragar tudo.

Mas talvez, no fim, ele não tenha conseguido acabar com tudo. Diz a reportagem que a Sabrina acabou lembrando de tudo. Só não disseram qual foi o trauma que ela não quis lidar. Que deixou para depois e foi engolida.

Eu também ainda não sei a chave para o fim da história de Clara. Mas vou continuar escrevendo. Talvez o feitiço apareça de novo.

E talvez, e espero isso em segredo quando vou dormir, aquele maldito homem não tenha acabado com tudo.

21:41

sábado, 5 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 86


23:46

Pensei em escrever antes para registrar que a química em minha cabeça parece estar mudando.

Sei lá, me senti feliz hoje.

Maria Se Sentindo Feliz.

Queria registrar, porque você que me acompanha sabe que isso não é muito normal.

Não que me importe. Ou me importe, mas finjo que não. Maria Que Finge.

Pensei em ler algumas das coisas que escrevi, e já nem lembro mais, como não lembro de muitas coisas. Não sei se Sarah diria para eu voltar atrás e reler alguma coisa. Pensei o que fazer sobre os meninos Jonas e Marcos. E – sei que você vai achar uma artimanha muito fajuta desta pretensa escritora, mas – tive outra boa ideia hoje, e esqueci.

Um dos garotos defendeu Clara. Ele bebeu no lugar dela, quando Claudius, esse homem maldito, quis forçar Clara a beber. Não sei se o garoto que enfrentou Claudius era Jonas ou Marcos. Como continuo tateando essa narrativa, vou imaginar que o garoto era Marcos e ele era filho de Lara. Portanto, primo de Clara.

Primo e irmão, porque – segredo de família – o filho de Lara era filho de Claudius também.

Não me surpreende que Maria, a mãe, estivesse sempre em depressão. Acho quase impossível ela não saber o que acontecia. Mas não sei. Imagine, Claudius fez sexo com as três. Com a esposa Maria, com a cunhada Lara, com a filha Clara.

Filho da puta.

Eu queria colocar um piano nesta história e fazer ele cair em cima da cabeça desse homem – mas acho que ficaria meio forçado. Não que ele não merecesse, mas – andei lendo mais um pouquinho de teoria literária – isso seria um Deus ex machina, além de um clichê. Até mesmo uma escritora horrível como eu sabe disso.

Acho que um dos garotos foi morar em outra casa. Claudius tomava banho com pelo menos um deles. Ele abusou dos garotos também? Não sei. Queria que fosse tão mais fácil escrever essa história, mas acredite: nunca é. Pelo menos hoje ainda não está doendo escrever. Vi Cris mais cedo, ela e seu olhar de tristeza, acho que por causa de seu amor que foi embora daqui, a Faele. Às vezes Cris sorri e eu fico feliz por ela. Talvez eu devesse escrever meus sentimentos em relação a isso. Mas já é suficientemente trabalhoso, e muito trabalhoso, criar a história de Clara e entender como afinal os personagens se relacionam.

Às vezes queria lembrar mais. Talvez pudesse pegar mais elementos da minha vida para compor essa história.

Pausa.

Escrevi isso mesmo? Lembrar de elementos da minha vida para compor essa história?

Que feitiço é esse que quando começo a escrever, as frases vão surgindo assim, como de trás de uma árvore de outras frases? Sarah está me contaminando com sua loucura. Esses psicanalistas são todos perturbados mentais. É isso. Loucos de atar.

Mas e se ela estiver certa no fim das contas?

Porque é impossível que eu, que nunca consegui escrever (ou será que já consegui e por causa de algum trauma também não lembro?), esteja criando essa história a partir do nada. Como disse, ou acho que disse, tudo o que a gente escreve é autobiográfico, em maior ou menor grau.

E se ela estiver certa?

Sarah, não faça isso comigo. Não faça, cadela, maldita. Sarah, sua puta, não faça isso comigo.

Não comigo.

Meu deus, não comigo.

00:06

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara – Dia 85


23:15

Ela está olhando para fora, para longe. A cabeça está sobre as mãos espalmadas.

Ela é linda.

Em seu olhar vejo tudo o que há para ser dito sobre qualquer coisa, e só não consigo escrever porque não consigo escrever coisa alguma.

Clara olha para o longe, perdida, sorrindo, feliz.

Clara feliz.

Ouço o som do piano.

Mas penso melhor. Ela não está feliz. O olhar está longínquo, procurando algum lugar no céu, como se o céu reservasse algum lugar para ela. Longe daqui, longe de lá.

Longe do homem alto e moreno de cabelos lisos.

Longe daquele inferno.

O piano me arrepia enquanto escrevo. Poderia dizer que dói, e dói mesmo, mas essa talvez seja a dor que cure. A tal limonada a partir dos limões, que Sarah disse outro dia. Esses psicanalistas insistem em procurar um sentido em tudo. Quer dizer que tudo o que Clara passou tem um sentido? E Maria, a mãe, também?


Não consigo imaginar. Não mesmo. Mas então pauso, penso, e Sarah me disse que não era para pensar, apenas escrever. Então ouço o som do piano e posso jurar que há violinos junto. Eles me dão conforto. Talvez até uma paz – mas só escrevo isso porque sei que ninguém vai ler. Jamais.

Talvez o piano, de alguma forma, seja o que tenha salvado Clara e Maria. Meu deus, pode ter sido isso mesmo. Maria tocava para salvar Clara, Clara ouvia para salvar Maria. Juro que não sei que mágica é essa de uma pessoa assim tão sem talento para coisa alguma como eu começar a escrever qualquer coisa, sem jamais – jamais – pensar no que vou escrever, e algo acontece. Algo que não entendo. Que dói. Mas que conforta.

Que me conforta.

Feito um abraço de mãe.

23:29

Piano Para Pequena Clara – Dia 84



23:32

De novo estou com fome, de novo não jantei, e de novo escrevo. Talvez eu devesse comer em vez de perder tempo escrevendo isso. Já vi Cris hoje mais cedo, e de novo ela não vai jantar comigo.

Maria Que Janta Sozinha.

O caso é que li um pouco dos livros de Sarah, uns que falam sobre perda de memória, busca da identidade. Essas coisas que não entendo. Quer dizer, entendo que não lembro, e não lembro de quase nada, embora acredite que haja uma luz em algum lugar.

Luz.

Existe uma luz muito forte, a tal clareza de bomba nuclear que, ainda não sei onde, existe nesta história.

Li que quando a gente sofre um trauma a gente pode esquecer de algumas coisas.

Trauma forte.

O cérebro apaga.

Ou recalca.

Ai, psicanalistas. Sarah está me contaminando com sua loucura. Mas não sou louca. Maria Que Não É Louca.

Ouço barulhos parecidos com os de uma máquina de lavar. Seria possível alguém lavando roupa as 23 e 38? Claro que é possível. Existe muita coisa aqui que ainda não entendo. Os garotinhos, por exemplo. Jonas e Marcos.

Jonas, não sei se já comentei, tem o mesmo nome de um irmão meu. Ou acho que foi meu irmão. Talvez eu tenha inventado isso também. Assim como Maria, a mãe, tem o mesmo nome que o meu, e só coloquei esses nomes porque – você sabe – sou uma péssima escritora.

Se você não lembra de nada, como lembra que tem um irmão com o nome de Jonas?

Talvez em algum canto da floresta do meu cérebro esteja a resposta que vai me fazer sair do outro lado.

Esqueci de tudo, ou quase. Ou lembro de algumas coisas, depois esqueço de novo. Acredite, não sei o que andei escrevendo por aqui, e não pretendo reler.

Esses dias Sarah falou, e espero que ela esteja brincando, que depois que eu terminar de escrever a história de Clara, ela podia publicar isso aqui. Nem em mil anos, falei, e mesmo que ela tenha rido, porque ela sempre larga suas charadinhas psicanalíticas e sorri, na certa já sabendo que vou querer matar essa mulher, e deixa tudo no ar. Mas vou escrever até o fim, antes de jogar tudo no lixo.

Ninguém jamais vai ler isso aqui.

Prefiro morrer antes.

Mas talvez nem todos tenham morrido. Eu não morri. A menos que seja um espírito vagando e acredito estar escrevendo uma historinha muito da ruim.

Sinto fome. Não consigo ver o homem alto e moreno de cabelos lisos, nem Lara. Nem Maria, na verdade. Mas estou me perdendo – de novo. Preciso conhecer melhor meus personagens, dizem os escritores, mas não sei muito de Jonas e Marcos. Ou melhor, não consegui inventar nada que valesse a narrativa.

Um deles defendeu Clara. Quando Claudius obrigou ela a beber.

Um deles fugiu de casa.

Vamos lá, Maria, você não pode ser tão ruim assim.

Invente qualquer coisa, pelo amor de Deus. Ninguém vai ler mesmo.

Um deles era filho de Lara.

Meu deus, que merda de história, e como me odeio por não conseguir criar uma historinha que qualquer criança conseguiria. Qualquer criança.

Qualquer criança.

Talvez a criança que fui e não lembro.

O que foi que aconteceu que me trouxe a este lugar?

Sarah, maldita, se você sabe a verdade, e eu tenho certeza que sabe: por que não me conta e acaba com este pesadelo?

23:51

terça-feira, 1 de abril de 2014

Piano Para Pequena Clara (Nanocamp)

(Nota: durante abril, está acontecendo o Nanocamp, que é uma versão mais light do National Novel Writing Month - Nanowrimo -, então os escritos das próximas quatro semanas serão do Nanocamp e para isso "comecei uma nova história" - ou nem tanto. É a continuação do Piano Para Pequena Clara, agora no dia 83.)




Meia-noite.

Vamos começar uma nova história. A partir do nada, assim como foi no começo. E esta começa à meia-noite. E a madrugada começa, e vamos juntos, tateando a narrativa mais uma vez. Escrevendo e tirando as palavras não sei de onde.

Apenas escreva, disse Sarah.

A quem estou enganando? Não posso começar uma história se nem terminei a outra. Ou talvez isso que tento agora, tão sem jeito – sempre sem jeito, Maria Sem Jeito – pode ser um novo começo.

Eu realmente queria começar tudo de novo. Jogar no lixo todas as bobagens que escrevi.

E fingir que não aconteceu.

Que foi apenas um sonho ruim.

E talvez tenha sido isso mesmo.

Meus braços doem, mas vou me forçar a escrever mais um pouco. Talvez escreva esta nova agora, e jogue no lixo a outra. Ou poderia ser, sem que ninguém soubesse, a continuação daquilo que não terminou. Porque a verdade é que esta merda não terminou. E não vai terminar antes que dê um fim nisso.

Fácil falar.

Todos morrem no fim. Fim.

Mas não sei se todos morrem no fim. E se morrem, como morrem? E se morrem, morrem todos mesmo? Eu não sei. Por isso escrevo.

A porta está aberta. Silêncio no corredor vazio. Sinto aquela dorzinha interna soprando um fio de melancolia em meu peito, mas pode ser apenas o começo de um novo mês. Nem sei há quanto tempo estou aqui, e também não importa que dia é hoje. Que noite é hoje. Mas por algum motivo sei que um novo mês está começando agora. Meus braços continuam doendo.

Então vi a foto de Maria, a mãe, e a pequena Clara, deitada sobre suas costas, as duas sorrindo sobre um tapete verde de grama. Sim, a foto que ficava em cima do piano de Maria. Mas vi essa foto jogada no chão. Quem sabe em uma parada de ônibus. Como ela foi parar lá? Como elas foram parar lá?

Fugindo de Claudius, o maldito homem alto e moreno de cabelos lisos?

Queria tanto que elas tivessem fugido. Ou que tenham fugido. Ainda há esperança. Um novo mês começa. Talvez não morram todos no fim. Talvez não morram. Talvez. Não.

Não sei mais o que escrever, como jamais sei o que vai acontecer nesta história doida que tento criar, sei lá de onde. Vá lá, já sei que tem algo de mim, tudo é autobiográfico em maior ou menor grau, não é mesmo? A vontade de chorar me abana, me convida para uma dança. Recuso. Hoje não. Estou cansada. Talvez tente dormir. Sei que não vou conseguir, mas alguma coisa tenho que fazer.

Penso em Cris neste momento. Ela não está aqui, e sinto como se ela estivesse bem longe neste momento. Queria poder ouvir o som do piano. Mas talvez não haja mais tempo.

Essas coisas que escrevo, diz você, estão cada vez mais confusas.

Ou talvez você seja a única pessoa a entender o que estou tentando... esconder? Se você sabe, por que me tortura? Se o fim disso tudo é uma tragédia, por que não me poupa e conta logo o que está no fim disso tudo? Talvez porque eu esteja viva, e preciso contar a minha história.

Quero dizer, preciso contar, ou criar, esta história de merda.

Preciso descobrir.

Preciso saber como ela termina. E sei quase nada dela. Mas sei que ela não termina hoje. E isso basta.

Por hoje.

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