sábado, 27 de junho de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 175


26 de junho de 2015

23:31

As garotas estavam vestidas com roupas que lembravam o arco-íris. Parecia algum tipo de comemoração, como as que às vezes acontecem aqui, e a um primeiro momento pensei que elas estavam de pijamas. Então Cris me contou que estavam celebrando a legalização do casamento gay no Estados Unidos.

Mas não é isso o que eu queria contar. Apenas registro porque foi uma das últimas cenas que vi antes de entrar para cá.

Pode ser inconsciente – falando em pijamas – mas sonhei com a Garota Cheshire. Ela estava aqui, em volta do chafariz que ela adora, lá embaixo e quando eu disse que achei que ela não estava mais aqui, ela com os cabelos alisados – e sim, de pijamas – me disse que veio me ver. E perguntou se eu estava escrevendo.

Quer dizer, ela sabe que não escrevi mais.

Talvez por isso o sonho.

E então decidi vir para o meu quarto-cela. Ver se acontece alguma coisa, apenas pensando em voz alta – ou melhor, pensando com os dedos.

Estou enferrujada, mas não importa. Vou escrevendo e daqui a algumas frases a chave vai aparecer.

Sim, Clara.

Suspiro ao escrever esse nome.

Fazia tempo que não escrevia.

Sweet Lady Clara.

A garotinha que se perdeu e que tento trazer de volta a vida, de dentro de mim. Fazer nascer de mim. Hmm, a chave está vindo. Maria, a mãe, se manifesta. Preciso dar a luz a Clara e esconder essa minha filha, que nem sei se é minha ou filha, mas filha de alguma maneira, do velho Claudius.

Dr. Monstro Do Pântano.

Dr. Médico Abusador.

Queime no inferno.

Comentei com Sarah que tinha um homem na minha história que volta a beber depois de dez anos em abstinência. Você pode mudar a história, disse ela. Não sei se posso. Não sei se a de Claudius. Mas talvez a de Clara. E acho que é isso que procuro a cada noite, cada vez que juro nunca mais escrever esta merda de história e ela me chama, se apodera, tipo possessão – a história de Clara que urge por ser contada.

Mas não há história nenhuma, apenas inventei tudo isso porque Sarah disse: escreva. Conte uma história. Invente. Qualquer coisa. Se lhe vier a mente, escreva.

E posso jurar que vi Lara vestida em uma dessas roupas de arco-íris.

Lara, a vadia.

Lara que parece com Clara, não posso deixar de registrar que pensei nisso.

Um arco-íris para a história de Clara, por que não?

Cores no fim de tanto preto-e-branco.

Suspiro uma vez mais.

Penso em Cheshire rindo em volta do chafariz. Lady Ballet que poderia dançar com Lady Brownie, se elas duas dançassem – mas em meu sonho elas dançam. E Sarah, a doce psicopata psicanalítica que me colocou nessa loucura, a que me diz do afeto muito intenso que a gente não pode dar conta, citando o velho tarado, sorri. Sarah que sara.

Um arco-íris e um piano.

Que é tudo do que preciso neste começo de madrugada.

Um arco-íris na madrugada que se chama esperança.

23:49

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Piano Pour Petite Clara - Jour 165

Traduzido e enviado para Elisabeth Roudinesco..:)


Monday, 23 Mars, 2015

21h08

Je tombe odeur. Le froid de retour progressivement. Depuis vendredi dernier, je l'espère. Sarah m'a invité à participer à ces groupes d'étude qu'elle fait. Comme, je dois plus d'idées pour mon histoire. Groupe de victimes d'inceste, elle ne dit plus rien. Il a dit qu'un jour peut savoir, de la même manière: d'avoir des idées pour l'histoire de Clara. Il ya quelque temps, il a dit qu'il aurait à faire dans un tel groupe et elle n'a pas insister. Juste fait l'appel. Peut etre un jour. Ceci est un autre des groupes qui ont lieu ici, et peut-être celle à laquelle elle m'a invité à être comme ça.

Peut-être qu'elle veut me convaincre de ces absurdités du vieux pervers.

Peut-être qu'il est quelque chose de plus.

Ces psychanalystes viennent toujours avec quelque chose d'autre.

Mais ils ne disent jamais.

Nous devons y arriver, et je pense qu'ils détestent un peu à cause de cela.

Je ne parlerai pas tout abus ou de se rappeler plus de créé pour l'histoire de Clara. Peut-être que Marie, la mère, a traversé avec votre père, et malheur passé avant quand elle a épousé ce foutu médecin, le docteur Claudius qui voulait à poser à votre fille Bonequinha. Doll, peut-être qu'il appelle Clara ainsi, mais ne se contente pas de simplement regarder et chérir - et de soins pour l'amour de Dieu - la poupée de la famille. Lara, la salope, a contribué à cela, quand il buvait de nouveau après dix ans. Je ne sais pas si elle aidé, peut-être Claudius avait déjà accidents vasculaires cérébraux. Et peut-être la boisson a publié de faire ce qu'il a lutté pour faire. Je ne sais pas, il suffit d'écrire ce qui vient à l'esprit.

Et dans mon esprit Claudius et Lara sont deux fils de pute.

Je pensais ne voudrais écrire cette histoire de merde, et pas plus parlerais de ce qui est arrivé.

C'est arrivé?

Mais il était juste une histoire créée à retenir.

Mon Dieu, plus je vous écris, plus recroqueviller, et plus se rapprocher de cet abîme.

Je peux être si beaucoup de gens dans cette histoire de fou. D'une certaine manière, tous ces personnages ont quelque chose de moi, et je déteste cette histoire à cause de cela. Peut être Clara, peut être Marie, la mère. Claudius peut être une mine de projection, et je était l'agresseur. Lara, salope tante, je peux aussi - pourquoi faut-il toujours me donne un certain dégoût quand je penser au sexe? En passant: je ne veux pas parler de sexe.

Le piano sonne au loin. Il est la seule chose qui peut me donner la paix. Un dernier espoir. Le piano qui pourraient donner un sens à cette merde mal dit histoire. Très mal dit. Maria ne sais pas ce écriture. Mais ce rêve encore. Oui, encore rêver.

Cheshire a été spécialement rire aujourd'hui. Elle est un rire de marche. Je ne vois pas son pyjama, mais leur rire en donnant la grâce dans la folie, qui est-il, qui est de nous tous. Blossom a également souri. Acacia, entrevu dans le couloir. Cheshire et Blossom échangé leurs jabs verbales avec Cheshire toujours gagner, car ils ne parlent pas d'une minute. Ils ont combiné pour flâner autour de la fontaine. Maintenant, il est encore nuit. Le froid revient progressivement. Je ne sais pas quoi écrire, ne savais pas. Dès le début quand il était juste un narrateur à la recherche d'une histoire. Je suis encore. Je ne veux pas voir encore. Je ne vois pas encore.

Comment se termine l'histoire de la petite Clara?

Peut-être dans un jour de pluie.

Peut-être que la prochaine pluie.

Mais avec ou sans elle, le piano sera continuer à jouer sa mélodie. Triste et beau.

Et ça me fait sourire.

Et se sentir comme vous êtes de retour à la maison.

21h29

domingo, 14 de junho de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 174


14 de junho de 2015

22:39

Uma nova madrugada está para começar. Cris queria ouvir música, mas não deixaram. Muito tarde, disseram. Então ela veio para mim e pediu um presente de aniversário. Ontem foi aniversário dela, e já que sou a Maria Que Escreve Cartões De Aniversário Nesta História Horrível        Que Não Quero Que Ninguém Leia, ela pediu para eu escrever sobre o aniversário dela. Como uma prova de amor, acrescentou ela.

Fiquei sem saber o que responder.

Mas decidi me trancar aqui de novo, ela ao meu lado – desde que não fale. A única que deixo ficar perto enquanto escrevo. Ela só disse que queria que eu escrevesse que ela estava bonita. “Ela estava bonita”. Acho que, ontem, ficou um pouco triste quando poucas de nossas colegas-zumbis, neste hotel de mortas-vivas, lembraram do seu aniversário. Cris colocou lápis nos olhos e tique-taques.

Ela estava bonita.

E agora não escrevo só por escrever.

Que ninguém me leia – este é o meu segredo de Mim para Você.

O caso é que ficamos só nós duas no refeitório com pouca luz e como quase ninguém a felicitou (embora, sim, lembraram dela, mas talvez não do jeito que ela queria e, ouso dizer, merecia), comecei a cantar parabéns bem baixinho em volta da mesa, e em vez de batermos palmas, estralei os dedos. Ela gostou. E me convidou para dar uma volta hoje. Fomos. Caminhamos pelo campo, no frio, passamos pelo chafariz que Cheshire gosta e, antes de sairmos, ela esticou a mão para mim. Vamos? perguntou ela. Acho que nossas colegas já tinham ido dormir – na verdade, saímos escondidas, porque esses passeios noturnos não são muito bem-vindos.

E caminhamos pelo campo, respirando esse sereno lindo, de mãos dadas.

- Tem certeza que não gosta de mulher? ela perguntou, enquanto dávamos a segunda volta pelo campo.

Baixei a cabeça e meus olhos foram se arrastando pelo chão junto comigo.

- Eu não sei do que gosto. Mas às vezes, disse eu, apenas queria fugir de mim sem ser encontrada.

Ela sorriu.

- Então gostamos de ir para o mesmo lugar. E está bom assim.

Sorri, ou acho que sorri. Na verdade, não sei bem como me senti em relação a isso. Mas ela estava feliz.

E eu também.

E isso basta.

- Você acha que um dia vamos sair? perguntei, enquanto caminhávamos pela noite fria, em círculos no pátio lá embaixo.

- Um dia, acho que vamos.

Lembrei de algo que a Chica Tortoni me disse esses dias. Que seus pais eram esquizofrênicos, ou um deles, não lembro bem, e que filhos de pais esquizofrênicos têm 10% de probabilidade de desenvolverem a doença. E então ela acrescentou, e notei carinho em sua fala:

- Não somos loucas, Maria.

Quem diria, restou carinho depois do fim de tudo.

Depois do incêndio.

Depois do terremoto.

Aliás, li uma frase em um livro de um filósofo chamado Cortella, citando um carinha chamado Robert Mallet, que dizia: “O que mais desespera não é o impossível, porém, o possível não alcançado”.

Esse Mallet estudava terremotos, que deve ser uma profissão interessante.

Queria que alguém me explicasse este terremoto aqui de dentro.

Sei que decidi dar esse livro de presente para Cris. E quando ela perguntou de onde eu tinha tirado dinheiro para comprar um livro, respondi apenas:

- Eu roubei da biblioteca.

Ela apertou o livro no peito e disse:

- Então eu aceito. Livros roubados têm um gosto especial.

Sorri.

Espero que ela tenha gostado de seu aniversário. De nosso passeio. Do livro.

Não sei que música Cris gostaria de estar ouvindo. Mas ouço em meu pensamento, a melodia que tento fazer unir estas palavras mal escritas em busca de um sentido. Pensei em dizer para Cris algo como “por favor, diga que você não é minha irmã”, mas talvez, de alguma forma, isso fosse estragar a mágica, a mágica que procuro quando tento capturar o piano que se perdeu no tempo, e a vida que quer voltar a ser vida.

Esse Cortella disse que a gente tem que se tornar necessário.

Não sei se algum dia já fui querida, amada. Necessária.

Mas neste começo de madrugada, penso que de alguma forma, sou um pouco necessária para Cris.

Não importa o nome que se dê para isso, porque no fim é apenas um nome.

E não me importo com nomes.

Eu que sequer lembro do meu nome.

Talvez não goste de mulher. Nem de homem. Não quero falar de sexo.

Apenas queria dizer que, de alguma forma, me senti necessária.

Maria Necessária.

E isso me deixa feliz.

E me faz querer viver mais um dia.

Obrigado, amada.

23:12

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 173


8 de junho de 2015

21:08

Suspiro. Não ia escrever hoje, mas a quentura em meu peito, que pode ser saudade, dor, angústia, querer ser, querer estar, não ter sido, tudo isso junto, me faz começar. Trancada neste quarto-cela. Hoje outra dessas malucas estava de aniversário. Parece que ficam esperando um cartão de aniversário da Louca Que Escreve Encerrada aqui. Não sei mais descrever. Tanta gente louca, tanta gente que se veste igual. Mas ela é morena, de cabelos lisos, alta e detentora de um tipo especial de loucura. Já notei que temos graus diferentes aqui, mas não saberia classificar. Sei que assim que a Srta. Vygotsky começou a sua preleção, sempre com um sorriso grande como ela, essa garota cujo nome ainda não sei sugeriu de comermos na aula. A Srta. Vygotsky, que discorria com alegria sobre por que aprendemos e como aprendemos, disse que poderíamos comer e deu um abraço nessa garota. Já tinha ouvido falar que era aniversário dela. Apenas esperei, ou não esperei, e aconteceu.

Minhas colegas de asilo armaram uma mesa, com doces e refrigerantes, e a Srta. Vygotsky continuou falando, e falou sobre aprendermos por identidade, o que me é um tema caro, porque ainda não sei quem sou nem como vim parar aqui. Talvez eu seja enquanto escrevo, o que é uma bonita definição para alguém que não sabe nada de nada, mas sabe que tem que escrever para colocar um pouco de ordem na caverna de sua alma. O caso é que Lady Brownie levou enfim seus brownies, prometidos desde a semana passada para o aniversário da Srta. Vygotsky, e me disse:

- Hoje você vai ter que escrever, Maria.

Não ia escrever nada, como geralmente não vou. Estava apenas ouvindo a aula da Srta. Vygotsky, na sala reservada para isso, para quem quiser assistir, e vi que a aniversariante, cujo nome ainda não sei, disse apenas: vamos comer. Quando vi os brownies de Brownie e cheirei, não uma, mas quatro vezes, e o cheiro de infância invadiu meu espírito, depois o gosto de infância, a infância que no fundo acho que é o que procuro quando começo a escrever estas palavras que nunca dão em nada, mas que talvez sigam um riacho cuja nascente ainda não conheço, decidi que teria que escrever.

Chica Tortoni me disse que tem tesouras, mas não pode me emprestar.

Claro que não pode. As tesouras aqui são proibidas.

Lembrei disso quando a Srta. Vygotsky elogiou o cabelo dela.

Não tenho pensado em morrer. Cris, graças a Deus, esse deus que nem sei se existe, que me largou neste fim de mundo, também não. Pelo menos que eu saiba. Ela anda meio quieta, disse que quer começar a assistir algumas das aulas – mas entendo porque ela não se mistura muito. No fundo, somos muito parecidas e acho que é por isso que ela confia em mim.

E talvez, de alguma forma, me ame, embora não saiba exatamente de que tipo de amor estamos falando, ou que tipo de amor é qualquer tipo de amor.

Mas todo amor é bem-vindo.

Nem acredito que escrevi isso. Mas escrevi: todo amor é bem-vindo. Sarah e suas livres associações. De onde tiro essas palavras? Claro que ela acredita que é do inconsciente e me pergunto: o que mais há lá?

Por isso escrevo.

Sei que no meio dos comes e da aula da Srta. Vygotsky, outra de minhas irmãs-zumbis me pegou pelo braço e perguntou:

- Como é a teoria do trauma, Maria? Acho que também sofri um trauma.

Gelei quando ela perguntou isso. Rememorei a explicações de Sarah, que disse que algo muito ruim nos acontece e a gente não consegue suportar; por isso, esquece. Acho que o termo é “inundação”.

Somos inundados por uma água na qual não conseguimos nadar, nem mergulhar. E para não morrermos afogados, esquecemos.

Acho que é mais ou menos isso.

Eu esqueci.

E nem sei mais se quero mesmo lembrar.

Certa vez, Brownie disse que só queria esquecer. Um ano inteiro, talvez dois. Eu queria lembrar, mas agora já não sei. E se lembrar doer demais?

De novo, o abismo se aproxima.

Não sei se sonhei isso, mas parece que a Cheshire foi embora. Personagens desta história que nem história é, ou não era, aparecem e somem. Cheshire foi embora, a Garota Que É Mais Sorriso Que Garota? Para onde? Para onde vão os personagens desta história quando saem dela, se ela ainda não acabou? E quem deu a eles permissão de irem embora?

Neste momento, porque tudo aqui é sobre elas, penso em Clara a espera de sua mãe Maria, que demorou a chegar. E tenho vontade de chorar.

Mas apenas suspiro, uma vez mais. Olho pela janela, para a praça escura onde Clara brincava no escorregador, para o chafariz que Cheshire tanto gostava. Suspiro uma vez mais. Penso em Lady Ballet, dançando para não colocar tudo para fora – ou dançando e colocando tudo para fora, talvez não colocando mais nada, apenas dançando. Penso em Cris. Tenho saudades, mesmo ela estando tão perto e incrivelmente longe. Ou seria longe, mas incrivelmente perto?

Ainda há esperança.

Feliz aniversário, garota sem nome. Outro dia invento um nome para você, mas considere-se felicitada. Outros aniversários virão. Ainda há esperança.

Não chore, pequena Clara.

Mamãe está chegando.

21:41

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Piano Para Pequena Clara - Dia 172


1 de junho de 2015

21:39

O frio está de volta e hoje quando olhei pela janela, antes de passar pelo chafariz lá embaixo, vi a brancura do dia, linda. 

Um branco como às vezes acho que é a explosão e o incêndio que termina esta história. 

Mas ela não vai terminar hoje. E hoje houve um motivo para comemorar. Minhas colegas de asilo prepararam uma festa-surpresa para a Srta. Vygotsky, de aniversário hoje. Antes de ela começar outra de suas explanações, fecharam a porta do salão que, escuro, irrompeu em parabéns quando ela entrou. A Srta. Vygotsky estava bonita, especialmente arrumada, então penso que, apesar da expressão de surpresa, talvez em seu inconsciente - já que Sarah disse que um inconsciente pode conversar com outro e a Srta. Vygotsky também acredita nas teorias daquele velho tarado -, ela já estivesse esperando uma festa. 

Sei que foi bonito. Pode haver um pouco de alegria e, por que não, paz aqui neste lugar de vez em quando. Se estamos todas mortas, como suspeito às vezes, celebrar a vida da Srta. Vygotsky nos deixou vivas por mais um dia - ou vivas, de volta, por mais um dia. Sei que Lady Brownie não trouxe seus brownies com cheiro de infância e a Chica Tortoni cortou ela própria o cabelo para esta ocasião. Não sei como, pois as tesouras são proibidas para nós, por motivos óbvios, mas ela apareceu de cabelo cortado, assim como algumas outras aparecem às vezes.

Todas loucas.

E felizes.

Um pouco de vida neste lugar, por que não? A Srta. Vygotsky convidou uma amiga para falar - talvez ela seja monitora de alguma outra ala, neste lugar de paredes e muros altos - e lembro que o Garoto Skinner reclamou que não falaram de Skinner, um dos anjos da guarda dele, assim como imagino que Sarah e a Srta. Vygotsky tenham o velho tarado. 

Não importa. Foi um momento feliz. Doces, refris, bolachas, salgadinhos.

Como uma festa de criança.

Uma festa de aniversário para sweet lady Clara. Antes de começar o terror. Antes de Claudius. Esses dias li que um pai se masturbava com a filha pequena e que ela tinha fissuras na vagina, causadas pelos dedos dele. Não quero parar de escrever para sequer cogitar se Claudius, Doutor Maldito, fez o mesmo com Clara. Não, hoje eu só quero este momento de vida.

Maria Que Quer Um Momento De Vida.

Uma outra coisa, que lembrei agora, e seguindo os rastros de Sarah, que me sugeriu escrever tudo o que pensasse, especialmente quando achasse bobo, insignificante, idiota. Nesta tal livre associação. Em uma dessas noites, Lady Ballet entrou em meu quarto e disse que queria que eu visse uma coisa. Que coisa, perguntei. Ela tirou a camisa e virou de costas para mim. Aliás, ela virou de costas para mim e tirou a camisa, então percebi que ela não queria que eu visse ela de frente, nua. Havia uma grande caveira em suas costas - não tão grande quanto a tatuagem que Cris certa vez me mostrou, com o mesmo movimento de se virar e se despir - e outro desenho que não consegui decifrar.

- Por que está me mostrando isso?

Ela se vestiu e disse:

- Eu sei que você também tem marcas, Maria.

Tive o impulso de chorar o suficiente para sair nadando, inundando tudo isso aqui e escorrendo pelo lado de fora dos muros.

Mas nada disse.

Olhei para meus braços.

Pensei no fim da história de Clara.

- Não estou falando dessas marcas, disse ela.

Lady Ballet sorriu. E disse que eu podia contar com ela.

Pensei em dizer que também sou uma garota com fendas. Mas é claro que ela sabe disso. Somos todas aqui. Acácia, Blossom. Dafne, que nunca mais vi. Todas nós, garotas com fendas. Lady Ballet e tantas outras que aparecem e somem desta história. Mas hoje eu só queria pensar no sorriso da Srta. Vygotsky. Que é grande como ela - talvez até maior que o de Cheshire, a Garota Que É Mais Sorriso Que Garota. Talvez do tamanho do sorriso da Garota Neutron, que está para ganhar bebê - como não reparei que ela estava grávida, a Garota Que Sabe Das Coisas?

Não importa. Um pouco de vida já está de bom tamanho pelo dia de hoje. Vida chegando, vida acontecendo. Vida que insiste e por isso mesmo é vida. Vida que pulsa. Como o piano que toca e sara todas as dores.

Sarah que sara, pensei agora.

Maria, a mãe, que toca.

Uma mãe sempre sabe.

Jonas e Marcos, perdidos nesta história. Assim como eu. Mas chegará o nosso tempo, meninos. De ouvir aquele piano lindo e triste de novo. Que insiste. E me faz, e me fazendo nos faz, querer viver mais um dia. E por hoje, está tudo no seu lugar.

Obrigado, Srta. Vygotsky.

22:12