terça-feira, 20 de outubro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 186


20 de outubro de 2015

21:33

Antes que chova, vou escrever.

Tive outra das aulas que Sarah ministra sobre essa gente louca que ela adora, e hoje ela falou sobre uma tal de Mahler, que dizia que quando o bebê nasce está na fase autista, durante o primeiro mês de vida, e ele só se importa com seu mundo interno; do segundo ao quinto mês ele fica na fase simbiótica, que não sabe exatamente o que vem dele e o que vem de fora; e lá pelo quinto, sexto mês... O que acontece mesmo? Esqueci. Mas fico me perguntando: como essa Mahler sabia disso? Chegava para o bebezinho e dizia: “fale mais sobre isso...”?

De qualquer forma, se bem me lembro, ela disse que no primeiro mês de vida o bebê ainda está em um prolongamento da vida intra-uterina, tipo, ele vai se portando como se ainda estivesse dentro do quentinho, castelo todo-poderoso e seguro do útero.

Que nem esse onde estou, pensei agora.

Acontece que nunca consigo criar uma infância tão infância para o meu bebê, Lady Clara. Minha criança linda. Minha princesinha. A Garota Cheshire me levou para ver o temporal que inundou tudo esses dias e abalou as estruturas do paraíso, mas por algum milagre não derrubou nada aqui, tirando as árvores, talvez por esta ser uma construção antiga, um hospital antigo, um asilo antigo, um cemitério antigo, um campo para almas penadas antigo. Não importa, mas lembro que vimos os relâmpagos que transformaram em dia a noite, que riscaram o céu, e a Cheshire disse que era lindo aquilo.

− Muito foda, foi o que ela disse.

E depois acrescentou que tinha medo. Dafne me disse que aquela exposição de artes para a qual Sarah tinha nos convidado, Festival Garotas Com Fendas, vai ser adiada. Agora que até cogitei, no escondidinho do de dentro de mim, ou na posição autista da Mahler, recém chegando do útero, mostrar um pouco desse monte de bobagem que escrevo aqui, mas tudo bem. Talvez Sarah tenha intuído que ainda não estou pronta.

Ainda não estou pronta. É por isso que não termino esta merda de história.

Mas antes que comece a chover, eu que só escrevo quando chove, e disseram que vem outro dilúvio talvez ainda hoje, me veio uma imagem na cabeça. Não sei se é invenção ou algum fiapo que escapou da floresta do meu inconsciente.

Maria que olha pela janela em um dia de chuva.

Parece uma foto interessante.

Mas não é essa imagem a que me refiro.

Uma garotinha em um dia cinza.

Um dia cinza que chove.

Uma garotinha caminha sobre a água, em um dia cinza, lindo feito um corte no pulso. Lindo feito a vida que ainda pulsa.

Cris, doce Cris. Que quer viver mais um dia. Como eu.

Às vezes pensamos pensamentos ruins. Queremos passar para o outro lado, e então decidimos ficar. Não podemos cruzar a ponte e depois decidir voltar atrás. Por isso não vamos.

Ficamos por aqui. Hoje.

Uma garotinha em um dia cinza, caminhando pelo verde da grama. Emolduradas pelo cinza do dia. Pelo cinza da vida. Maria Melancólica. Mas Maria Que Vive.

A pequena Clara que gostava de se atirar nas poças de água e escorregar pelas águas sobre as gramas, feito um bote rumo ao outro lado. Longe da dor. Me arrepio quando escrevo, mas de novo: não consigo parar. Não podemos passar para o outro lado, Cris. Não podemos, garotas. Temos que ficar aqui e fazer o melhor com isso que sobrou da vida – e se é isso que se chama esperança, então somos esperançosas. Talvez tenha sobrado muito mais do que consigamos ver. Dafne e sua novidade. Cheshire e sua risada. Tanta gente que entra e sai, e não sei como elas entram, nem saem.

Sabby, Acácia, Blossom. O Garoto Skinner. A Srta. Vygotsky. Sarah, a Sarah que sara.

Escrevi tudo isso e nem toquei no homem alto e moreno de cabelos lisos, Maldito Doutor Abusador. Talvez ele esteja morrendo dentro de mim.

De dentro dessa história.

Que espera a próxima chuva. Assim como aquela garotinha linda, a Menina Mais Linda Do Mundo espera. Um passeio pela chuva, por que não?

Talvez esta história termine em um dia de chuva.

E ninguém morra.

Mas sei que Clara vai passear, e sim: ser feliz.

22:01

sábado, 10 de outubro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 185


10 de outubro de 2015

00:00

Queria nunca mais ter que escrever.

Queria que passasse a dor.

Mas ela passa, e volta. Então preciso escrever. Uma nova madrugada começa. Tem chovido tanto. É bom poder escrever sem ser lida, sem ser encontrada. De novo a mágica acontece, e eu que jamais tenho algo realmente importante para dizer, parece que sei lá de onde, algo vem povoar minhas frases. Vem me fazer sonhar com ela: Lady Clara.

Que é no fim das contas o motivo de eu estar aqui.

De onde tirei isso?

Meu deus, a mágica acontece e não consigo parar de escrever. Meus dedos estão feito um trem em alta velocidade e não sei o que há do outro lado desta estação. Por isso escrevo. Vou esvaziando meu armário sempre tão cheio e sem saber o que escrever, caminho. A procura de Clara, perdida no fim desta caverna. Talvez lá onde o riacho corre. Longe do chafariz de Cheshire, ela que costumava conversar com Blossom e Acácia lá embaixo. Por onde andarão neste asilo que assim que a noite entra porta adentro começa a silenciar? Blossom, que me mostrou desenhos. Que escreve, sei lá, confissões. Que escreve para si mesma. Feito eu, Maria que escreve para si, na esperança de que ninguém leia este monte de merda que escrevo aqui.

Mas de novo me volta a mente a proposta de Sarah, que às vezes consegue me deixar atordoada, em sofrimento psíquico como se já não fosse o suficiente, e parece que nunca é suficiente, e odeio ela por causa disso – e então ela me diria que se a odeio essa tal de praga que o velho tarado foi espalhar na América está funcionando. Meu deus, essa maldita livre associação também faz parte de mágica. Eu tinha começado a falar na proposta de Sarah. Acho que ela quer mesmo que eu fale da minha não-história para os outros. A história que faço de tudo para que ninguém leia, mas que talvez – meu deus, Sarah realmente me contaminou com suas loucuras – meu inconsciente desgarrado queira que seja lida.

Se odeio mesmo Sarah, talvez não seja ódio. Talvez seja sim, mas disfarçado de dor. Porque dói se não escrevo. Se fico tempo sem olhar para esta historiazinha da qual fujo sempre que posso.

Vi mentalmente Lara, magrinha, novinha. A titia que deu pro papai, titia bobinha talvez, jovem, cheia de vida, que poderia ter cuidado de Clara, pelo menos não ter se divertido com o cunhado no réveillon, ele que não bebia há dez anos. E ele, maldito seja, pensou que o champanhe que escorria pelos peitos de Lara era mais importante que as lágrimas que escorriam pelos olhos de Maria, internada no hospital em plena noite de réveillon.

Maria, a mãe.

Mamãe linda.

Mamãe triste.

Mamãe abandonada.

Feito a filha, triste, abandonada. Esquecidas.

O que aconteceu com Jonas? Ele sempre foi assim, esquisito, quietão, falava coisas sem sentido, olhava para o nada, via coisas? Ele era como o cara do Rain Man? Ou o cara de Uma Mente Brilhante? Jonas Michel, pensei de novo.

Então me canso de escrever. O armário está um pouco mais leve. Não sei onde estão minhas irmãs-zumbis deste asilo. Dormem, passeiam, namoram escondido por aí? Lembrei da pequena Daf e sua novidade. Será que ela vai trazer pinturas novas? E penso em Cris, neste começo de madrugada. Talvez ela, que me disse, meio dormindo, meio acordada, que me ama, também faça parte, assim como a escrita, das coisas que não consigo mais viver longe por muito tempo.

De alguma forma que ainda não entendo, a cada madrugada, chego mais perto de Clara. Não sei explicar, mas é como se eu sentisse a sua presença. Não sei se em espírito, porque como às vezes cogito que esta história termina em um incêndio e talvez todos morram no fim, não sei se ela morreu.

Como morreu, porra? É só uma história que estou inventando. Só uma historiazinha.

E de onde estou tirando ela, pareço ouvir a voz sem-vergonha de Sarah me perguntando.

Nesses momentos não é dor: odeio mesmo ela.

Então suspiro.

De onde estou tirando esta história?

O abismo se aproxima de novo. O trem segue rumo ao desconhecido. Entro em um túnel dentro de uma rocha gigante. Sinto o brownie com cheiro de infância, vejo as sapatilhas de Lady Ballet, o caderninho de Blossom. A risada de Cheshire, ela que também gosta de chuvas e trovões. O trem segue, curando. Sarando. Afinal, Sarah sara. O trem que não me deixa em paz que talvez me conduza a um lugar melhor. Mesmo com medo, eu, Maria Medrosa, sigo conduzida por este trem.
Então sorrio.

O trem rumo a próxima estação, do outro lado desta rocha sem fim, o fim do túnel.

Lá onde me esperam Clara e Maria, a mãe.

00:31

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Piano Para Pequena Clara – Dia 184


Quinta-feira, 1 de outubro de 2015

23:03

− Nossa estrutura tem marquinhas como em um cristal, disse Sarah.

Era outra de suas explanações em nossa pequena sala de aula. Pelo menos aquele dia me pareceu pequena e – não posso deixar de registrar que pensei isto – aconchegante. De novo ela voltava a citar o velho tarado, o messias dela, e acrescentou: − Se a estrutura for frágil, ela pode ruir.

Tive uma vontade de chorar, mas foi só um segundo, tipo um sopro, um cochicho, um espirro de melancolia, e imaginei tudo isso que me rodeia ruindo, como teias de aranha ou cacos de um vaso que se quebrou e não pode ser consertado, um castelo de cartas talvez esperando esse sopro do qual falei.

Estou cansada. Nem sei por que decidi escrever nesta merda de novo.

Não sei. Não gosto de escrever. Não gosto porque dói.

Mas também não consigo parar.

Acho que as provocações de Sarah são apenas para eu começar a escrever. Porque ela sabe que não vou parar depois de colocar a primeira letra, a primeira palavra, as frases que vão sendo vomitadas de dentro de mim.

De dentro de mim.

Onde está a resposta.

Malditos psicanalistas. Sarah conseguiu me infectar.

Então ela disse na aula que estava pensando em fazer uma feira das artes, um salão do sonho. Isso depois de ela dizer que essas pessoas que escrevem vivem permanentemente em dois mundos, e por “essas pessoas”, suponho, ela se referiu a mim, porque me olhou de soslaio quando disse isso, e citou aquele Winnicott, do sou-eu-mas-não-sou-eu, e falou em um tal de espaço transicional, que para os artistas é matéria, mas também é sonho.

Um sonho bom, pensei. Um sonho sem dor.

Meu deus, sem dor.

Então ela falou nesse salão que ela talvez faça e cada uma de nós tinha que aparecer com algo que soubesse fazer bem. Qualquer coisa. Mesmo que fosse um sonho.

Lady Ballet disse que poderia tentar dançar. Uma dança, por que não?

Lady Brownie disse que faria seus brownies. Com cheiro de infância, lembrei.

Dafne disse que poderia pintar. Que inclusive tinha pinturas novas. E uma novidade.

Blossom disse que poderia citar um pensamento. Uma citação de Nietzche.

A Garota Cheshire disse que traria ela mesma.

E riu.

Minhas irmãs de asilo foram conversando e suas vozes foram ficando distantes, e já nem sei se aquela sala era pequena, embora me tenha parecido naquele momento, e elas foram para o corredor, e não vi mais nada, fui apenas caindo dentro de mim.

Será que Sarah espera que eu fale da minha história para uma plateia?

Se eu não estivesse tão cansada, talvez me arrepiasse. Talvez chorasse.

Então, mesmo cansada, me arrepio.

Talvez sorrisse.

Talvez cantasse.

Que bom que pelo menos isto que estou escrevendo agora ninguém vai ler.

Não sei, acho que nunca soube, o que sentir.

Penso no pátio lá embaixo. Escuro. Deserto. Se Cris estivesse por aqui, talvez fugíssemos para um passeio. Talvez, não sei.

Mostrar minha história? Que nem é uma história, não é nada, mostrar esta merda?

Mostrar Claudius, aquele filho da puta miserável? Lara, aquela vadia?

Mas então temos Jonas, que talvez fosse um bom irmão, mesmo – tenho pensado nisso – ele também vivendo dentro de seu mundo, e talvez só lá. Temos Marcos, que defendeu Clara, quando Claudius quis que ela bebesse, e ele bebeu em seu lugar. Temos a pequena Clara.

Minha menina linda.

E temos Maria.

A mãe.

Não sei se suficientemente boa, e não quero pensar nisso agora.

Temos Maria.

Maria como eu.

Minhas meninas.

E talvez elas mereçam uma outra chance de voltarem a vida.

Voltarem? É só uma historinha que inventei.

Mas estamos sempre em dois mundos, Sarah, você tem razão. Maria, a mãe, precisa viver, nem que seja em minha historinha. Clara precisa viver.

E com ela, eu também.

Meu deus, eu também.

23:31