terça-feira, 7 de junho de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 199


Terça-feira, 7 de junho de 2016

22:55

Faz frio no asilo. Tem feito noites frias e hoje um garoto está de aniversário. Ele é da cor do mogno e tem os cabelos crespos. Ouvi ele dizer no corredor “leiam o Édipo”, então percebi que ele é mais um desses perturbados que gostam do velho tarado. Ele veio para mim e pediu um cartão de aniversário. Faz tempo que não escrevo cartões, pensei. Aliás, faz tempo que não escrevo nada, e eu que jamais soube escrever fico ainda mais enferrujada a cada dia que passa. Mas vamos lá, vou tentar, disse.

Seu nome é Arlequim. Não sei se ele comemorou com alguma das minhas irmãs-zumbis neste lugar onde o tempo não chega. Ele é amigo do Garoto Skinner, que me disse que as brigas políticas continuam do lado de fora deste muro. Se eu estivesse lá fora, disse Skinner, ia nas passeatas para derrubar este governo.

Ele já foi um revolucionário, me disse.

O caso é que Cris me contou que não quer mais morrer.

Confesso que isso, por si só, já valeria eu escrever qualquer coisa.

Soube também do Projeto Fita Preta. São as pessoas que já tentaram se matar ou se cortaram demais e andam com uma fita preta no pulso esquerdo. Tipo assim, para se identificarem. Como uma irmandade das Garotas Que Voam Pelos Muros. Notei algumas garotas com fitas pretas nos braços caminhando, mas achei que fosse apenas moda. Não um código. Garotas que já tentaram passar para o outro lado. E me volta a ideia de que tenho que conduzir essas garotas rumo ao outro lado do abismo. Porque a dor delas é a minha dor.

A dor de Maria, a mãe.

A dor da pequena Clara.

Garotas da Fita Preta.

Será que já usei uma dessas fitas?

Olho para as cicatrizes em meus braços.

Cris não quer mais morrer.

Eu também não.

Hoje, não.

Cada palavra que escrevo, pensei agora, poderia ser um corte a menos. Poderia ser um corte a menos para elas. Penso em ir na ala das Garotas Que Se Cortam, passar por esses corredores e suas grades e dizer:

Escrevam, garotinhas. Escrevam até a dor passar. Escrevam até que a dor faça sentido. Escrevam para voar. Não pelos muros, mas pelo papel, pelo teclado. Cortem pelas palavras.

Talvez ainda exista algo para eu fazer neste asilo. De novo, a história perdida de Clara me chama. Tenho que continuar escrevendo esta merda sem sentido até chegarmos do outro lado.

Soube que houve um estupro coletivo do lado de fora destes muros.

Claudius deve ter seus seguidores.

Espero que todos queimem no inferno.

Lentamente.

Feito um corte que não pode parar.

Mas hoje penso que pode ser parado.

E a fenda, neste vale de Garotas Com Fendas, pode ser um caminho para uma vida nova. Não pelos cortes, mas um caminho: sem dor.

Cris não quer mais morrer, minha menina linda. Como Clara, minha menina linda.

Filha amada.

Por que este Arlequim disse para lermos Édipo?

Não sei. Talvez ele tenha visto em alguma das aulas de Sarah.

Não importa. Está frio, e a umidade invade cada canto deste asilo.

Em algum lugar perdido no tempo, Maria toca para a pequena Clara.

Fendas, nunca tinha pensado, podem ser um espaço em branco esperando ser preenchido.

Pelo fim da dor, conduzindo as Garotas da Fita Preta até sua paz.

E se for por isso que passamos tudo que o passamos, garotas: vai ter valido a pena.

23:18