sábado, 22 de outubro de 2016

Piano Para Pequena Clara – Dia 205



Sábado, 22 de outubro de 2016

00:11

Uma nova madrugada começa. Minha cabeça parece comprimida por duas mãos invisíveis. Preciso escrever. Até que a dor vá embora. Estava lendo um texto que Sarah passou sobre o funcionamento psicótico, sobre ser tudo ou nada, amo ou odeio. Para sempre ou nunca mais, diferente dos neuróticos que conseguem ver coisas boas dentro do ruim e vice-versa. Funcionamento psicótico. Existem marcas.

Existe um buraco naquilo que escrevo.

Na história que tento contar, que nem história é, apenas um delírio vindo não sei de onde.

De novo, meus dedos criam vida, e não consigo mais parar de escrever. Não tenho nada para contar, mas existe algo jorrando neste momento. Sangrando, cortando, chorando.

O piano também sangra, corta, chora.

Mas não consigo mais me cortar.

Meu deus, de onde tirei isso?

A dor segue. O piano dentro de mim, as teclas que martelam e martelam, feito vozes de comando.

Feito carinho de mãe.

Começo a chorar. Mas ainda não consigo parar de escrever.

O piano é como um colo materno. É como estar segura no útero, de onde nunca gostaria de ter saído.

Suspiro. Meu deus, Sarah e suas loucuras. Esses psicanalistas estão no topo da cadeia alimentar da demência.

Funcionamento psicótico.

E se tudo isso for um sonho, pensei de novo.

Como termina a história da pequena Clara? Brownie disse que quer saber como termina a história dela. Tudo deve ter uma finitude, não?

Foda-se, é minha história. O piano ainda está tocando. E estamos vivas. Eu e todas as outras Marias que habitam este asilo. Somos todas Marias, pensei hoje. E ainda preciso conduzir minhas Meninas Com Fendas por este vale de sombras, mesmo que sombras, assim como o inverno, sejam lindos como um corte no pulso. Sim, tenho a personalidade melancólica. Gente feliz o tempo inteiro me irrita. Aliás, acho que gente feliz o tempo inteiro é de uma pobreza ímpar. Descemos mais fundo, meninas. Somos de outra classe. Somos superiores. Somos as Meninas Com Fendas abençoadas e amaldiçoadas de viver nesta terra, com cegos que acham que veem.

Ainda dói, mas o piano também toca. Está escuro lá fora. Silêncio. Só não há silêncio dentro de mim, a Maria que ouve coisas, que ouve pianos dentro de si.

Como a pequena Clara ouvindo Maria, a mãe, tocando e sorrindo e chorando e cortando a si mesma, enquanto Dr. Claudius, maldito seja, batia nela, comia a cunhadinha, Titia Putinha Lara, talvez Maria também tocasse para o pequeno Jonas, filho não assumido de Claudius. Dr. Abusador, Dr. Brincando De Médico Com A Filhinha. Doutor Espero Que Esteja Queimando No Inferno.

Talvez, sim: esta história termine com um incêndio.

Talvez todos morram, porque ainda estou pesada enquanto escrevo. Minha cabeça ainda dói, embora, confesso, ela esteja um pouco mais leve. Ainda bem que ninguém jamais vai ler esta merda, Maria, péssima escritora. Ainda não tenho nada para escrever. Escrevo para não me cortar. Escrevo para não tocar fogo em tudo.

O abismo se aproxima.

Tenho certeza de que Sarah sabe como termina esta história.

Neuróticos acham, psicóticos têm certeza, lembro dela ter dito uma vez.

E se tudo isso for um sonho, pensei de novo.

Existe um buraco aqui. Um buraco grande como o tempo. Um buraco dentro de mim. Uma falha naquilo que tento contar, no cenário que não consegue ser montado.

Cris foi transferida para outra ala. Nos falamos semana passada. Ela não tentou mais voar pelos muros. Fiquei feliz. Maria que ainda é capaz de amar. De amar de novo, quando for a hora. Neste momento, nesta madrugada onde sou a Rainha Todo-poderosa do Castelo no Reino das Meninas Com Fendas, apenas escrevo. De alguma forma, escrever me faz sentir viva. Me faz cicatrizar. Ou sangrar de novo, mas colocar este sangue que deve ser trocado. Que deve inundar feito um rio, arrebentar a represa. Chorar oceanos, encharcar cidades.

Salvar pessoas.

O piano ainda toca dentro de mim. A dor diminui. Sarah falou nas marcas que são como copos de vidro, que se quebram dentro de nós. Alguns se quebram em pedaços grandes, podem ser montados de novo. Outros quebram feito cristal, e eles jamais voltam a ser os mesmos. As marquinhas sempre ficam.

Que tipo de copo sou eu?

Que tipo de copo fui eu?

Poderei voltar à vida feito um copo Cica ou estou condenada a vagar feito cristais levados pelo vento?

Talvez eles também sejam levados para além destes muros.

Sim, talvez meus cristais sejam levados para além dos muros deste asilo. E sejam confortados pelo piano que me acalenta, por este amor que ainda acredito que exista, e que existe por todas essas grades, estas celas, estes quartos. Existe dentro de todas nós, Meninas Com Fendas. Talvez seja este o buraco que tento preencher. Aquilo que falta. Cristais que foram estilhaçados, feito uma infância que se perdeu.

Me arrepio.

Chego mais perto do abismo.

Penso em pular.

Mas hoje ainda não é tempo.

Hoje não, como imagino que Claudius tenha ouvido naquelas reuniões antes de voltar a beber depois de dez anos em abstinência, quando estava se divertindo com um champanhe pelos seios de Lara, na madrugada de réveillon, que deveria ter cuidado de Maria, a mãe, sua esposa internada em um hospital.

Parecido com este lugar, não posso deixar de registrar que pensei.

Suspiro de novo. O piano ainda toca. Triste, lindo, soberano, persistente.

Triste, lindo, soberano, persistente.

Maria não desistiu da pequena Clara.

E só por isso hoje não vou pular pelos muros.

Cristais sendo levados para fora deste asilo. Embalados por um carinho de mãe.

E só por isso acredito que encontraremos nossa paz, nossa luz. A saída daqui. A volta para casa, feito anjos que anseiam por retornarem ao lar. Meus dedos cansam, mas ainda não escrevi o que queria escrever. Uma vez Sarah disse que a psicose é fruto de um desejo não satisfeito.

O que será que eu quis que não tive?

O piano ainda toca, mas há um silêncio dentro de mim. O que foi que quis que não tive?

Ou tive e não sei que tive?

Talvez quando descobrir isso finalmente saiba como termina esta história.

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